sexta-feira, janeiro 20, 2006

Jonathan Swift - Cassino e Pedro: Elegia Trágica

Dois jovens cantabrígios estudantes,
Refinados os dois, ambos amantes,
Conversando como era seu costume
De livros muitos e amoroso lume -
(Dá-me palavras, Musa, com que diga
De Pedro e de Cassino a bela intriga)
Pois Pedro foi-se a visitar Cassino
Para palrar e p’ra beber do fino.
E que visão descobre esse rapaz?
Que envolto em tédio o seu amigo jaz.
Dir-se-ia que se havia levantado:
Em torno à fronte um sujo peúgo atado,
Sentado ele estava entregue a pontear
Com linhas de cor vária o outro par.
Os calções rotos deixam ver apenas
A fralda em tiras, partes mais morenas.
Barba já velha, e a perna se exibia
Negra de pêlos e de porcaria.
Os ombros num tapete ele embrulhava:
Para dormir camisa não usava.
E junto aos pés tinha o penico a ponto
De um vómito, de um cuspo, um mijo pronto.
O seu velho cachimbo estava ali,
Semi-fumado ainda, ao pé de si.
E Pedro o viu assim nestes preparos,
Postos em fumo e choro os olhos claros.
Restos de grogue ainda se esquentavam
Nas brasas do fogão, que se apagavam.
‘Ó Cassy, porque abanas o toutiço?
Porque inda estás na cama, que foi isso?
Que o pintassilgo, o pintarroxo, e o tordo
Matinas cantam de comum acordo,
E muitas vezes eu te vi saudando
A Aurora, em tua Flauta bem soprando.
Humores melancólicos me escondes?
O quê? Nem uma palavra me respondes?’
E foi-lhe dando um par de safanões,
Remédio estudantil p’rás depressões.
O pastor amoroso, de dor mesto,
Célia! Gritou três vezes, não o resto.
‘Cassy, meu caro, temo da pergunta
Que me cumpre fazer: Célia é defunta?’’
“Que o mal fora só esse, oh quem me dera!
Mas minha estrela é mais maldita e fera!”
“Confessa cá: tua Célia deu em puta?”
“Ser-me-ia doce em troca de tal cicuta!”
“Que a Célia arranque a peste as tranças de ouro!
Bexigas, morbo gálico, ao seu couro
Estão a comer? Ficou já sem nariz?
Isso é vulgar. Podes viver feliz.”
“Oh, Pedro, breve tinta é uma beleza
Que Tempo e Acaso pelam indefesa!
Mas Célia destruiu aquele encanto
Que a tudo sobrevive porque é santo.
Ninguém será capaz de imaginar,
Nem há divino tom do bem falar
Que possa descrever como essa ingrata
Meu puro amor traiu, como me mata.
Que ela inventou uma flecha envenenada
Para sempre em meu seio recravada”.
“Com o rapaz do barbeiro te enganava.
Isso eu sabia. Manda-a, pois, à fava.”
“Ó Pedro, toda a Ninfa tem direito
De escolher livre a quem descobre o peito.
Razão não tenho de queixar-me dsso,
Se outro pastor prefere ao seu serviço.
Mas isso que ela fez, oh que canseira:
Um crime é contra a humanidade inteira!
Que o sol se esconda para nunca ver
O que mulheres jamais podem fazer!
Conselho não terás bastante forte…
Deixa-me entregue ao desespero e à morte.
Arcádicos amigos, todavia,
Queimai-me com um soneto ou uma elegia,
E este epitáfio me graveis na lousa,
Contra que o Tempo seu poder não ousa:
Aqui Cassino jaz, Célia o matou,
Que nunca disse a Dor que o liquidou.
Adeus, ó mundo vão!… Oh… que já escuto
O ladrar triplo de Cerebero bruto!
E vejo Alecto que me espera… Oh não…
Chicote de escorpiões em sua mão…
E já Caronte em sua barca velha
Me faz sinal que embarque para a grelha…
Aí vou, aí vou… Eis a Medusa… Enfim…
Como as serpentes chiam contra mim!
O infernal fogo me liberta e frita!
Fora daqui… Eu não falei… Quem grita?”
“Precisas de purgante e de sangria,
Ou perdes o juízo em tal porfia.
A causa porém peço que me digas,
Pelas leis da amizade, as mais antigas,
Que Célia fez terás de me contar,
Estou pronto a teu destino partilhar”.
“Como dizer?… Meu coração se parte…
Mas tal amigo pede com tal arte…
Em que torturas sofro, Pedro, pensa…
Meus olhos viram essa falta imensa…
Chega-te mas, que eu fale ao teu ouvido,
E, quando a pó me vejas reduzido,
Nem mesmo então tu digas meu segredo
Sequer à Ninfa que amas… Tenho medo
Que essa alma virginal trema de horror
Do que mulher não sabe em seu candor!
E às canas murmurantes tu não contes
O crime mas medonho destes montes.
Nem vás dizê-lo às rochas solitárias,
Onde o Eco escuta em gargalhadas várias.
Nem deixes Zéfiro que te ouça e leve
Por Cantabrígia quanto não se escreve.
Nem às aves de pena tu relates
De Célia os pavorosos disparates.
Se me traíres, eu, espectro inconsolado,
Estarei todas as noites a teu lado.
Ouso porém ter confiança em ti.
Adeus, amigo meu… Escuta: eu vi.
Causa é de sobra que a Razão me apaga:
Oh… Célia… Célia… Célia… Célia… caga”.

(tradução de Jorge de Sena)

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